São Paulo avança na regulamentação de armazenagem em área comum, mas peca ao tentar responsabilizar operador jurídico por imposto do remetente com base em ‘interesse comum’
Um dos temas mais recorrentes e sensíveis do varejo global é a integração entre canais físicos e eletrônico, objetivando a uma experiência de consumo otimizada. É o que se chama omnichannel.
Embora disponha de diversas vertentes e modalidades, o omnichannel é, hoje, uma realidade mundial, sobretudo em países como Estados Unidos e China, em que é possível realizar, sem grandes complicações, compras online com opção de recebimento ou retirada em estabelecimentos físicos (pick-up points) ou mesmo em armários situados em pontos estratégicos e de grande circulação. A este último, chamamos lockers.
No Brasil, o omnichannel começa a se tornar ponto de obsessão dos grandes grupos, sobretudo os varejistas. Parte das modalidades, como o click and collect, websales in store e os guide shops já são uma realidade juridicamente viável, embora faça-se necessária alguma engenharia fiscal ou a obtenção de regimes especiais para a sua implementação.
O mesmo não se dá em relação à Omnicanalização da logística reversa e ao estabelecimento de pontos de coleta e retirada dentro de estabelecimentos comerciais (e que, portanto, possuem inscrição estadual)[1].
Em relação aos lockers, há uma situação intermediária: embora existam modelos juridicamente factíveis de se implementar a operação, há grande insegurança jurídica sobre qual o modo mais adequado, haja vista a ausência de regulamentação normativa a respeito do tema.
Situação semelhante vivem as empresas que ofertam facilidades aos pequenos e médios e-commerces, cuidando dos processos e procedimentos relativos ao estoque, guarda, embalagem, entrega e adequação fiscal da remessa das mercadorias ao consumidor final. Estamos falando do operador logístico.
Não é novidade que, justamente por ausência de regulamentação legal, há uma grande zona cinzenta sobre a atividade dos operadores logísticos. O cenário é ainda mais incerto sob o prisma fiscal/tributário.
Atenta ao problema – e buscando solucioná-lo – a Coordenadoria Tributária da Fazenda do Estado de São Paulo (“CAT-SP”), em elogiável iniciativa, editou a Portaria CAT nº 31, de 18 de junho de 2019, por meio da qual objetivou regulamentar a “armazenagem em área comum” realizada em território paulista.
O fato foi amplamente divulgado, tendo sido publicado, no site da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (“SEFAZ-SP”), artigo intitulado “São Paulo estimula o comércio eletrônico e as atividades de Operadoras Logísticas e Fulfillment” [2], em que festejou o estabelecimento de “condições mais favoráveis para empresas que efetuam suas vendas via internet, ao mesmo tempo em que fortalece e garante segurança jurídica para o fomento das atividades das empresas que atuam em conjunto nesta modalidade de negócio.”
A propaganda gerou alarde. O alarde trouxe mais confusão do que seria esperado e muitas empresas entenderam que a CAT 31/19 estaria regulamentando a atividade dos lockers e, até mesmo, outras modalidades de omnichannel.
Muito embora não seja impossível estruturar uma operação de locker nos moldes do conceito de operador logístico estabelecido pela referida portaria, em nossa leitura, tal modelo não é o que melhor reflete a essência deste tipo de negócio, sobretudo quando estruturado de forma terceirizada em relação à operação de venda, dentre outras razões, por impor ao prestador a responsabilidade pela “guarda, conservação, movimentação e gestão de estoque” das mercadorias recebidas.
Igualmente, a CAT 31/19 não soluciona a barreira legal atualmente existente para a implementação de um modelo de negócios baseado em pontos de coleta e retirada (pick-up points) em estabelecimentos comerciais. Tal posição foi recentemente reiterada pelo Fisco Paulista na Reposta à Consulta nº 19.342/2019:
Ementa
ICMS – Obrigações acessórias – Mercadorias adquiridas por não contribuinte – Entrega, a pedido do adquirente, diretamente em estabelecimento de terceiro, contribuinte ou não.
- Não há previsão legal para entrega de mercadorias adquiridas por não contribuinte a terceiro que seja contribuinte do ICMS.
- A mercadoria adquirida por não contribuinte pode ser entregue em domicílio de outra pessoa desde que também não seja contribuinte, observado o disposto no artigo 125, §7º, do RICMS/2000.
(destaques acrescidos ao original)
A reforçar a incomunicabilidade entre a CAT 31/19 e os lockers e pick-up points, o Parágrafo Único do artigo 1º da referida Portaria restringe o conceito de operador logístico ao “estabelecimento cuja atividade econômica seja, exclusivamente, a prestação de serviços de logística, associada, ou não, à prestação de serviço de transporte” e que esteja inscrito no CNAE 5211-7/99[3].
O lado bom
Embora tal restrição pareça-nos impertinente[4], fato é que a CAT 31/19 tem seus méritos em facilitar, efetivamente, a rotina fiscal do operador logístico que estoque mercadorias de terceiros em área comum, demanda esta que se alinha à necessidade de diversos e-commerces, sobretudo os pequenos e médios, que não dispõem de inteligência logística interna. Abaixo, os principais pontos positivos da CAT 31/19:
- Viabiliza o armazenamento em áreas comuns no território paulista;
- Dispensa a emissão de documentos fiscais e escrituração de livros fiscais em relação às operações de armazenagem;
- Os serviços de logística são documentados por contrato, o qual será considerado em uma fiscalização;
- Simplificação fiscal: Controle mediante demonstrativo mensal denominado “Controle Físico de Mercadorias Depositadas em Operador Logístico”.
O lado ruim
Por outro lado, merece crítica um elemento posto de forma bastante discreta ao final artigo 2º da CAT 31/19, relativo à pretensa atribuição de responsabilidade ao operador logístico sobre o ICMS devido pelo remetente das mercadorias. Note-se:
“Art. 2º O Operador Logístico estabelecido neste Estado deverá inscrever-se no cadastro de contribuintes do ICMS com o código 5211-7/99 da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE, mediante o uso do aplicativo Coleta Online – Programa Gerador de Documentos – PGD do CNPJ (CNPJ versão web) disponível no “site” da Secretaria da Receita Federal do Brasil – RFB, ficando, em relação às atividades decorrentes da armazenagem de mercadorias, dispensado da emissão de documentos fiscais e escrituração de livros fiscais, sem prejuízo da solidariedade prevista em lei, especialmente nos incisos XI e XII do artigo 9º da Lei 6.374, de 01.03.1989.”
(destaques acrescidos ao original)
Para entender qual o tipo de responsabilidade imputada aos operadores logísticos, importante avaliar o que dispõem os incisos XI e XII do artigo 9º da Lei 6.374/89, mencionados na norma supra:
Artigo 9º – São responsáveis pelo pagamento do imposto devido:
(…)
XI – solidariamente, as pessoas que tenham interesse comum na situação que dê origem à obrigação principal;
XII – solidariamente, todo aquele que efetivamente concorra para a sonegação do imposto. (grifos nossos)
Sobre o inciso XII, é intuitivo – e, mesmo, correto – responsabilizar solidariamente pessoas que tenham contribuído de modo consciente com qualquer ato de sonegação. A situação do inciso XI, entretanto, é diferente.
Sem a pretensão de exaurir o extenso tema da responsabilidade tributária solidária, parece-nos desarrazoada e, até mesmo, ilegal a tentativa de imputar ao operador logístico responsabilidade solidária[5] pelo ICMS devido pelo remetente da mercadoria, inclusive porque a relação jurídica estabelecida entre este e aquele nem ao menos se amolda ao conceito de interesse comum assentado pela doutrina e jurisprudência[6].
Conclusões
a) A Portaria CAT 31/2019 traz importantes regulamentações e conceituações ao armazenamento em área comum por operador logístico, trazendo segurança jurídica a estas operações e pode, sim, beneficiar indiretamente o e-commerce;
b) A CAT 31/2019 não regulamenta as operações omnichannel com pick-up points e lockers. Para quem pretende implementar uma operação nesses moldes, é recomendável que se busque uma consultoria tributária especializada no tema, que indicará as melhores alternativas frente ao modelo de negócios desejado.
c) Não surpreenderá se, nos próximos anos, forem lavrados autos de infração contra os operadores logísticos, buscando satisfazer dívidas dos remetentes das mercadorias.
A recomendação, nesta situação, é que tais autuações sejam contestadas, tanto em sede administrativa quanto judicial, havendo argumentos jurídicos consistentes para afastar eventuais lançamentos tributários pelo Fisco Estadual.
[1] Nesse sentido, existem projetos buscando a viabilização destas operações, como Projeto de Lei Complementar nº 148/2019.
[2] Nesse sentido, existem projetos buscando a viabilização destas operações, como Projeto de Lei Complementar nº 148/2019.
[3] “Depósitos de mercadorias para terceiros, exceto armazéns gerais e guarda móveis.”
[4] Pois, como sabido, diversos operadores logísticos oferecem também soluções em termos de tecnologia de informação, gerenciamento de estoque e vendas, controles fiscais etc. A limitação, neste caso, tende a ser maléfica por tornar muito estreita a aplicabilidade da norma.
[5] Que independe de ordem de preferência.
[6] “Forçoso concluir, portanto, que o interesse qualificado pela lei não há de ser o interesse econômico no resultado ou no proveito da situação que constitui o fato gerador da obrigação principal, mas o interesse jurídico, vinculado à atuação comum ou conjunta da situação que constitui o fato imponível.”
(STJ, REsp 834044/RS, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 15.12.2008)